segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Respeito de "Viver do Trabalho"

Em uma coluna da página 15 de O Globo, a Acadêmica Ana Maria Machado faz um apanhado completo do drama dos direitos autorais nas "mídias" e na internet em particular. Defende o Marco Civil da Internet, lei em discussão e tramitação no Congresso Nacional. Dona Ana Maria Machado quer que a veiculação de audiovisual na internet, sem a devida chancela de quem de direito, seja considerado crime. Assim: um neguinho (não tomem, aqui, por favor, qualquer relação envolvendo etnia - me recuso a falar de raça; neguinho é um vício de linguagem meu para referir qualquer ser humano), então, um neguinho resolve produzir um vídeo de uma viagem a Quito e daí põe um fundo musical do tipo "Bapa-rum, mau, mau" para dar um clima. Gosta do que fez e resolve por no YouTube e veicular na social prá mostrar pros amigos. Então? A Comics Entertainment poderá solicitar a prisão do neguinho pelo "bapa-rum", por ser ela a detentora dos direitos da elucidativa canção? A Prefeitura de Quito, acho, também teria direito. O dono da casa ladrilhada que, eventualmente, nosso amigo fotografou e inseriu no seu vídeo poderia denunciá-lo por roubo de imagem.
Peraí, gente. Sou a favor da preservação dos direitos de autor, mas crime, não! Mais paradoxal ainda é que, paralela a essa briga, vem outra, defendida por muitos - e muitos daqueles que se batem pelo Marco Civil -, pela descriminização de um "tapinha" de erva de vez em quando. Um "tapinha", pode. Por um fundo musical num videozinho do YouTube, cadeia! Vai ver que essa é a mesma lógica que no Brasil tenhamos uma legislação que bota na cadeia por oito anos, em regime fechado, sem direito a sursis, quem mata um passarinho, mas permite responder em liberdade e com direito a sursis, se condenado, quem mata um ser humano. Às vezes pode ser até assassino confesso e nem por isso pega um dia sequer de prisão (alguém aí vai duvidar?).
Falando sério, acho que o direito de autor deve ser preservado no INTERESSE DO AUTOR. Que seja econômico, se este assim o quiser. O descumprimento do dever econômico deve ser um crime grave (e no Brasil, não é), mas isso não tem nada a ver com direito autoral, tem a ver com direito civil e penal. No Brasil, onde ainda acreditamos que Deus é brasileiro, temos a mania de falar por Ele: escrever certo por linhas tortas. Em vez de corrigirmos a falha na legislação, insistimos em usar um paliativo para o caso específico. O neguinho postou no YouTube e Facebook? Ganhou dinheiro com isso? Então, que pague! Se não pagar, cadeia por ser mau pagador. Agora, o neguinho posta uma música qualquer. O autor nem se manifesta, ou se interessa, mas cadeia pro neguinho. Um 'ladrão'  da arte alheia.
Mesmo assim, acho relativo essa coisa de direito de autor na mídia. O músico, até fins do século XIX, não contava com mídia para divulgar seu trabalho. Ele tinha que sair por aí, "vendendo" seu produto, isto é, cantando, interpretando, recitando pelas praças públicas e pedindo uma "cooperação". As pessoas "pagavam"  com o que podiam e de acordo com o grau de apreciação do que viam e ouviam. Escritores enviavam seus produtos a mecenas que divulgavam. Estes, eventualmente, ofereciam pensão, mas mandavam copiar os trabalhos, e às suas custas divulgavam pelo mundo afora, onde outros copiavam para suas bibliotecas, e eu não tenho notícia de "pagamento de direitos autorais" pelos "copistas".
Foi no desenvolvimento dos meios de comunicação de massa que a arte e literatura que se conheceram um potencial desconhecido. E os interesses do grande capital se voltaram para ganhar, e muito, em cima de artistas e escritores, e estes reagiram, cheios de razão, e exigiram que um naco dessa riqueza viesse para eles. Foi uma reação em cima da ação predatória do grande capital.
Mas, a fonte verdadeira da riqueza do autor nunca deixou de ser o "pé-na-estrada" da canção imortalizada por Milton Nascimento. O contato do artista com seu público sempre foi a fonte de riqueza e a razão do artista existir. O ganho pela veiculação na mídia deve ser relativizado. Deve ser entendido no contexto do confronto capital x trabalho, do contrário, como disse a acadêmica Ana Maria Machado, voltaremos ao escravismo, com o artista como único escravo na sociedade democrática.
Podemos fazer uns exercícios interessantes a esse propósito, como pensar que o eventual autor da expressão "quem te viu, quem te vê" poderia registrá-la num desses órgãos de proteção ao direito autoral e exigir indenização de Chico Buarque pela sua utilização em um dos mais belos sambas de nossa MPB.
Toda arte, quando publicada, como diz a palavra, torna-se pública. Não pertence mais a quem a fez. A criação artística é autoria individual mas tem cunho social porque só pode ser concebida no contexto em que o artista vive. Hoje em dia, com a disseminação da internet, com a crescente democratização da mídia, falar em direito econômico do autor começou a perder o sentido. Salvo pela proteção contra a exploração pelo grande capital, coisa que tende cada vez mais a se dissipar, nunca foi tão verdadeiro a expressão "a arte é do povo". Reconhecer o crédito é a única reivindicação legítima pois com isso presta-se homenagem ao autor e dá a ele a credibilidade necessária para seu ganha pão.
O artista vai ter que voltar à praça pública para ganhar a vida.

Nenhum comentário: