sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Deliquente e Eu, ou, Lidando com a Realidade do Jovem Brasileiro (ou a maioria deles)

Vou contar um historinha (não sou adepto do anglicismo estória) que me aconteceu um par de anos atrás. Certo dia, bateu à porta de meu escritório, onde trabalho, um garoto, negro, com algum sobrepeso, de seus 14 a 15 anos de idade. Explicou-me que estava ali com a autorização do diretor do meu instituto e que era um interno da FEBEM. Vendia ímãs de colocar em geladeira, de sua própria fabricação, segundo ele, o que acreditei, pois apresentavam um aspecto artesanal, confeccionados com esmero, porém de gosto duvidoso. Contou-me que o juiz Sirio Darlan tinha estabelecido que cada imã daquele vendido representava um dia a menos no internato onde se encontrava “recolhido” (ah o politicamente correto! não se pode mais falar preso ou detido em se tratando de menores). Comprei uns dois ou três (ofereça aos meus colegas, para não cair tudo nas minhas costas) o que o deixou bastante contente. No ato da compra, notei que ele evitava fazer conta para o troco. Pediu para eu dizer qual era o troco que ele tinha que devolver.
Não perguntei o motivo de seu “recolhimento”. Acho que isso é absolutamente irrelevante. O que sei é que ele vivia uma tragédia, tragédia que ronda mais de 50% da população jovem brasileira. Nele a tragédia se materializou. Escolhas erradas? Não importa. Outros, com mais sorte, conseguem se livrar.
Ano seguinte, mesma época, mesma cena, o que se repetiu no ano que se seguiu. Minha sala ficou enturrada de ímãs de geladeira, e não me atrevia a levar para casa. Até que ele declarou que “era o último lote”. Se o vendesse ele estava livre. Cheguei a pensar que isso era uma estratégia de venda. Não vemos isso tantas vezes em nosso dia a dia?
Pois ele não voltou no ano seguinte e eu achei que ele estava sendo sincero. O garoto ganhou a liberdade. Não me senti nem menos nem mais “redimido” por isso. Não sou de compaixão, e por isso não sou de carregar culpas cristãs. Ajudo se posso. Não dou esmolas. Considero isso um resquício daquela arcaica manifestação de solidariedade social que nos fez humanos civilizados. A religião se apropriou disso, com o tempo. Como não tenho religião, deixo esse sentimento livre, para se manifestar nas horas que acho certas.
Pois bem. Ele voltou, no outro ano. E procurou por mim. Seu registro de entrada na instituição constava vir falar especialmente comigo.
Contou-me que foi procurado pelo traficante do bairro que lhe ofereceu a gerência de um ponto de venda. Foi aí que soube que a razão de seu “recolhimento” tinha sido tráfico de drogas. Então ele me disse que sabia que se aceitasse, seu destino seria voltar ao “recolhimento”, ou pior, a morte. Não sabia o que fazer. Disse-me que sua única saída seria voltar a sua terra, Ilhéus, BA. Lá, sob o guarda-chuva de sua família, poderia encontrar uma coisa decente (palavra dele) para fazer. Acrescentou que dali a uma hora e meia, mais ou menos, saía da rodoviária um ônibus para Ilhéus e que a passagem custava R$ 150,00. Essa era a razão de ele me procurar. Eu era a única pessoa que ele pensou para lhe dar essa ajuda. Abri a carteira e, lembro-me bem, tinha R$ 147,00. Peguei tudo, e lhe passei o dinheiro. Você pode se virar com R$ 3,00? Posso, disse ele.
E partiu. Da janela do corredor vi ele se dirigir ao portão de saída. Empreenderia uma viagem de uns dois ou três dias e não tinha dinheiro para comer.
Essa situação me incomodou. Acho que incomoda qualquer um. Veio a dúvida: estaria ele falando a verdade? Não seria mais um “papo” para pegar seus caraminguás e usar, sabe-se lá, para consumir droga, ou “capitalizar” para uma compra como distribuidor? Se ele voltar, pensei, não terá mais nada. Acabou. Minha fonte secou, vai procurar outro otário. Pois foi sentindo-me 50% otário que o vi se afastar. O critério era sua volta. Com aquele papo, ele não poderia mais voltar. Se voltasse, sua história seria um embuste.
Pois ele voltou. Era fevereiro, cerca de uns 8 meses depois do último encontro. Disse que vivia em Ilhéus com sua mãe, que era uma uma “baiana” que vendia acarajés e vatapás em uma banca. Veio para o carnaval, com a família, pois “no Rio se ganha bem mais dinheiro que na Bahia”. Disse que isso era idéia dele. Me deu um cartão com o “endereço”, um estande na Cidade do Samba, onde ocorre os pré-carnavais no Rio de Janeiro. Acrescentou que eu devia aparecer lá, de noite, pois a irmã dele queria muito me conhecer. Insistiu várias vezes para que eu fosse conhecer sua irmã que queria me “agradecer” pela ajuda que tinha dado a seu irmão querido. Coloco o “agradecer” entre aspas pois ele falava com especial entonação.
Pressentindo o “perigo”, não fui. Guardei desse encontro um resquício de ressabio. Ele voltou, afinal, e voltar era o sinal que estava sendo insincero. No entanto, pensei, suas histórias são tão ricas. Se mentia, mentia artisticamente. O rapaz tinha verve de escritor, um contador de histórias. Seria, se tivesse alguma instrução. Ou tudo isso era verdade? Será? Depois disso ele nunca mais voltou. Teria ficado ofendido por eu ter esnobado a “oferta” de sua irmã?
Prefiro a última opção. Não me importa o que ele sente por mim. Será mais um aspecto das diferenças entre nossos mundos, que são tão díspares. Prefiro sentir que esse foi mais um desses episódios que faz minha vida valer a pena. Pois meu maior temor, como todo mundo, é passar por esse planeta incólume, sem fazer diferença nenhuma. Para esse rapaz, esse não foi o caso.