quarta-feira, 26 de novembro de 2014

UPP, e agora? A pergunta que devia ser feita em 2010.

Acho que quem viu não esquece as cenas bíblicas da fuga dos bandidos da Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro, mostrada ao vivo pelas câmaras da televisão, de cima, num helicóptero. Somada ao hasteamento da Bandeira do Estado do Rio de Janeiro no alto da favela, essas são cenas emblemáticas da "retomada pelo estado de direito" das comunidades da região "reféns da sanha insaciável dos bandidos".
Diante daquela cena babilônica, uma pergunta se colocava, mas poucos foram capaz de ouví-la: e agora? Agora, disse nosso governante, vamos instalar UPPs, a polícia vai acabar com tudo quanto é atividade criminosa. O otimismo estampado no aspecto grave de nosso governador decretava: agora virá um ciclo de paz e prosperidade (só faltava o gesto na mão direita do eterno Sr. Spock, personagem interpretado brilhantemente por Leonard Nimoy em Jornadas nas Estrelas).
Na esteira da Vila Cruzeiro, já instalada no Jacarezinho, e outros, vieram a UPP no Vidigal e Rocinha. Aproveite-se o élan: já que estamos que estamos, vamos em frente!
Agora, o que vemos, é que "eles" se adaptaram. Batem de frente com UPPs e seus PMs parcamente treinados. Sequestram, assassinam e se re-instalam. Afinal, o que fazer agora? O que vem depois das UPPs?
Os que estão de alguma forma conectados com essas questões, políticos, sociólogos, diretores de ONGs nacionais e internacionais, e o próprio secretário de segurança, à frente de toda aquela ação, já alertam, não é de hoje: é preciso trazer educação, serviços básicos, serviços do "Estado"; é preciso cidadania.
Cidadania é uma palavra genérica. O que é cidadania? Acho que cada um tem na cabeça uma resposta. A prática da cidadania parece ser a chave para a solução dos graves problemas sociais pelos quais passamos. Só acho difícil definí-la. Se não a definimos de forma definitiva, não acho que seremos capazes de instalá-la onde se faz mais necessária.
O meu ponto de vista se aproxima do mecanismo com que a bandidagem retoma seu posto nas favelas do Rio de Janeiro. Tal como uma colônia de bactérias, ela se adapta ao novo ambiente e se reinstala renovada, mais resistente. É assim: a lei que Darwin enunciou no século XIX se manifesta não só nos recipientes assépticos dos laboratórios de biologia: ela está na base de quase tudo que se faz não somente dentro de nosso corpo, mas nos atos e ações tomadas na sociedade. Só nossa elite (inclusive aquela que costuma tietar o operário-messias) não vê. Nossos governantes passam a kilômetros dessa constatação.
É curioso como até os bandidos agem sob os preceitos da lei da evolução: agora são violentos nos assaltos para impor um sentimento de "pelo menos não fizeram o pior".
Cidadania é um dos frutos da civilização. É uma conquista, e como custou conquistá-la! A civilização se manifesta num eterno balanço entre dois conceitos que se contrapõem: o da garantia dos direitos e o respeito aos limites. Toda vez que os limites não são respeitados, que cada um possa brigar por seus direitos. Eu sempre me perguntei como essa dicotomia se apresenta numa favela, um lugar onde se instala sem autorização, onde não se delimita onde termina uma propriedade. Na favela não se respeita limites e não se pode exigir por direitos. Há civilidade? Há cidadania?
Há quem (e há tantos) acredite que a simples execução dos "bandidos" bastará. De onde acham que vieram esses atuais bandidos? E por que acham que com a "morte" desses não virá ninguém para ocupar o lugar?
Muita gente sustenta que, por ser habitada por gente amistosa e cordial, a favela não tem "pé de bandido", como diria um cantor popular emanado de uma delas. Eu chamo a atenção para a questão que Freud coloca em O Mal Estar na Civilização: não terá a amistosidade e a cortesia nas favelas a ver com essa "precariedade de civilização"? Nesse caso, essa "bandidagem" tem a ver com as manifestações de hierarquização no sentido civilizatório, onde usurpadores tentariam assumir o poder, numa espécie de estado embrionário. Uma sociedade pré Totem e Tabu, como alega Freud: no início o poder foi ocupado por "estrangeiros".
A instalação plena, ou sua tentativa, da "civilidade" possivelmente não vai resolver, no estado atual das coisas. Pois, se é verdade que vale a lei da evolução aqui, as forças usurpadoras de poder, os bandidos, já criaram seu "nicho de sobrevivência", pois é característica universal das espécies consolidadas. Há outra razão para que a orientação na "direção certa" tenha grande chance de falhar. É que o problema ganha complexidade porque essas forças se sustentam no comércio de drogas ilegais. O comércio de drogas, legais e ilegais, é, talvez, o mais promissor de todos, pois mexe com algo incontornável: a angústia da morte. Num certo sentido, na base, todo comércio se sustenta nisso, já que é a contrapartida civilizada da nossa luta pela sobrevivência no estado selvagem. O comércio de produtos que aliviam a angústia, a de morte inclusive, é a "última fronteira" da aventura humana, como se diz na apresentação do Jornada nas Estrelas.
Por isso, e agora? Agora, nada, meu amigo. É encomendar o caixão.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Aborto: Proibir vai extinguir?

A morte da moça, Jandira, na Barra da Tijuca pode ser o sintoma de algo que acontece no Brasil em quase todos os temas envolvendo legislação. Jandira desapareceu depois de "embarcar" num carro em direção a uma suposta clínica de aborto. Ao mesmo tempo, a polícia procura identificar de quem é o corpo carbonizado encontrado no dia seguinte. A hipótese mais provável é que trata-se de Jandira. Por outro lado, uma técnica de enfermagem está envolvida como suspeita de ser a dona da clínica para onde Jandira foi tentar o aborto. A técnica sumiu.
As circunstâncias da carbonização do corpo indicam que, se a hipótese se confirmar, não se trata de um acidente. Não há indícios de explosão nem incêndio associado. O corpo carbonizado permite precariamente sua identificação, parece ter sido submetido a uma "cremação". A idéia teria sido "apagar" evidências, inclusive sua identidade.
Se se confirmar que o corpo carbonizado é de Jandira, um crime terrível se desenha. Provavelmente a "operação" deu errado, Jandira pode ter morrido durante o procedimento. O cadaver é submetido a uma "cremação", atirado numa desova qualquer e quem está envolvido desaparece. Pronto: onde se passaria o "fim de uma vida", isto é, a do feto, perdeu-se duas: a da mãe, e a do filho.
Não quero banalizar a tragédia terrível de Jandira e sua família. Ela enviou um SMS para o ex-marido: "Amor, mandaram desligar o telefone, tô em pânico". O texto revela um relacionamento no mínimo amigável com o "ex". Tudo indica que Jandira levava uma vida tranquila. Relacionava-se bem com seus pais, lidava bem com um antigo casamento. Um descuido (?), talvez, a fez grávida. Quarto mes de gravidez: aparentemente Jandira titubeou. Sexo ocasional? O parceiro não apareceu. De toda evidência Jandira acreditou ser possível ter esse filho. Será que o "ex" aceitaria adotar? Por enquanto não sabemos quase nada. Sabemos, apenas, que Jandira resolveu "tirar". Alguma coisa não deu certo.
Aborto no quarto mes de gravidez é inadimissível, mesmo para os que são pela sua descriminalização. Nesse ponto, medicamente, o feto já poderia ter "vida independente". Poderia ser colocado numa incubadora e ali se desenvolver. Mas, para mim, a decisão de Jandira não foi criminosa. Para mim, Jandira é vítima. Vítima de uma mentalidade comum no Brasil: a de que a sociedade dará certo se as leis forem "perfeitas". Forjadas numa mentalidade idealista, as leis são escritas por legisladores que as querem "ideais", como se estivéssemos, para parafrasear um conhecido economista, na Bélgica. E o pior: na Bélgica o aborto é livremente permitido. Só que a sociedade brasileira, pelo menos a maioria dos brasileiros, vive num lugar mais parecido com a Índia. O resultado é que, para o brasileiro médio, a legislação não é um sistema que serve de baliza para seus atos: é um emaranhado de obstáculos ao seu viver. Quando as regras deixam de ser referência para a vida comunitária para se transformar em estorvo na vida de cada um, então aparece tragédias como as de Jandira.
"A lei é boa", dizem os juristas. Parece que o povo é que é ruim.
Leis, como a "Lei Seca", em que se transgride os direitos individuais garantidos em Constituição, são mostras do desespero do legisladores. São, como eu chamo, leis "trans-ideais". Eles não sabem mais o que fazem (se é que estão interessados) para estancar a sangria que é o genocídio brasileiro: um dos maiores índices de morte por trânsito, um dos maiores índices de assassinato e morte violenta, um dos maiores índices de aborto, um dos maiores índices de abandono de bebê, um dos maiores... enfim, a maior tragédia.
E nada parece indicar que isso vai mudar.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

As Mensagens de Joaquim Barbosa

"This is language, for God sake!" Essa é a exclamação que McNamara, secretário de Defesa do governo Kennedy, fez ao comandante das operações da "quarentena" do bloqueio naval que os americanos impuseram a Cuba, durante a crise dos mísseis em 1962, quando este gritou 'fogo' contra os navios russos que iniciaram um furo ao bloqueio. McNamara não sabia que os tiros eram de festim, um primerio alerta. De qualquer forma, o recado estava dado.
Não sei se McNamara entendia de semiótica, já que um dos principais formuladores desta foi um americano, Charles Peirce. Mas ele completou: "Isto é o sr. Kennedy tentando se comunicar com o sr. Khrushchev!", diante de um general perplexo. O que ele queria dizer é que, diante das forças que circundavam ambos - e que, no que dependesse delas a guerra já estaria em curso - era impossível um meio no qual ambos os presidentes se conversassem diretamente (o 'telefone vermelho' ainda não existia, por sinal, foi criado em consequência dessa crise). Restava um apelo à semiótica: uso de símbolos que permitissem a comunicação direta de dois homens que, tanto o planeta dependia deles para continuar existindo, quanto estavam eles de mãos atadas.
No final, valeu a diplomacia e estamos aqui, respirando e escrevendo blogs.
Lembro disso quando vejo Merval Pereira reclamando que o ministro Joaquim Barbosa continua imprevisível. "Vivemos tempos obscuros" disse um monge a William de Barskeville, o "Sherlock Homes" da Idade Média, descrito por Umberto Eco em O Nome da Rosa. Esse aposto não é por acaso. A história se passa no século XIII, o ápice do domínio cristão, na época católica, sobre a Europa. E essa condição guarda muita semelhança com o que estamos vivendo agora.
Como disse Adélia Prado: "virou uma geléia, e não é agradável". Naquele tempo, tinha-se convicção que o cristianismo havia se imposto e que vivia-se o melhor dos mundos, um céu na terra, onde os que não se beneficiavam dele eram pecadores, ímpios sem Deus no coração. Tinha-se certo que as benesses e o luxo eram distribuidos aos bons cristãos e a justiça divina caía implacável sobre as cabeças dos insinceros, pagãos por tradição.
É como agora, só que o tema não é mais o cristianismo: é o socialismo, ou a geléia populista de Lula e os petistas. Agora, como naquele tempo, o sistema de poder implantado no Brasil, como na Europa, naquele tempo, acredita estarmos vivendo no melhor dos mundos. Os que reclamam são os "não inclusivos", os segregacionistas, os racistas, uma elite atrasada que não percebe a "beleza" do mundo que os petistas acham ter sido forjado na cabeça iluminada do novo messias: o operário Lula!
O que eles, como os antigos decanos do catolicismo do século XIII, não percebem é que, entre os "ímpios" daquele tempo, e a "zelite" dos dias de hoje, tem gente que está vendo que não é nada disso! Tem gente que vê que agora, como antes, o poder se consolidou ainda mais na mão do que há de pior na raça humana: aproveitadores, carreiristas, oportunistas, assassinos disfarçados de justiceiros, perversos disfarçados de protetores, tiranos disfarçados de democratas, mafiosos disfarçados de policiais. É difícil tentar entender por que tantos amigos meus são tão fanaticamente defensores disso tudo. Mas isso é tema de uma análise que ainda estou articulando e que espero colocar aqui em futuro próximo.
Joaquim Barbosa (o bat-ministro), como já disse aqui, lembra mais um galo cacarejando num covil de raposas. Nunca escondi (muito antes dos petistas notarem sua existência) que para mim o STF está mais para antro do que para tribunal: uma convenção de políticos mais parecida com a corja que popula o poder descrita acima. Joaquim, o bat-ministro, colocado ali por sua cor pelo operário-messias (mais um legado petista em nossa sociedade: a política baseada no racismo, em nome da justiça racial), tentou impor uma ideologia jurídica que ele forjou em sua carreira de magistrado (dos honestos, é verdade, coisa que rareia cada vez mais em nosso sistema judicial), permeado pela ingenuidade típica dos oriundos de sua gente: classe média ascendida pelo próprio esforço, ainda por cima com crivo do preconceito. Percebeu tarde o embuste. Não entendeu a "linguagem". Faltou-lhe um pouco de semiótica, pelo menos de sua práxis.
Mas agora ele entendeu. Como sempre, aprendeu "apanhando" de um sistema implacável, feito para "não amadores", como disse um cronista. Agora, serve-se dela. Joaquim está de mãos atadas, como estava a dupla Kennedy-Khrushchev. E assim começa a emitir sinais, gestos que devem ser interpretados. Ao retirar-se aos poucos da cena do poder, nosso bat-ministro tenta nos comunicar alguma coisa. Aos repórteres e jornalistas de ir atrás. Afinal, para que eles servem?
A imprensa brasileira reage ao fato literal. Não entende nada de semiótica, apesar de viver disso. É a burrice geral, misturado à geléia em que o Brasil se transformou.
"This is language, stupid!"

terça-feira, 20 de maio de 2014

Exorcisando I

Sempre me falaram da mais-valia como um elemento fundamental constituinte natural da economia capitalista. Agora me pergunto se esse realmente é o caso. Porque:
1 - Mais-valia é um conceito introduzido por Marx e Engels para dar base a sua teoria de exploração que a burguesia exerce sobre o proletariado. Sem mais-valia não há exploração do trabalho.
2 - Para introduzir esse conceito, M&E vão buscar em David Ricardo, em seu Princípio da Política Econômica e Taxação, a declaração: "o patrão paga ao operário o mínimo necessário para a sua sobrevivência". Para M&E essa é uma constatação suficiente para concluir que o operário é explorado em seu trabalho.
3 - Essa conclusão não é assim tão direta. Para chegar a ela é preciso partir do princípio que o preço de uma mercadoria (que para M&E é integralmente produzida pelo operário, isto é, pela classe operária) é igual ao valor da sua manufatura. Será?
4 - Por muitos anos aceitei isso como um axioma, de forma que o conceito de mais-valia sempre teimou em se interpor em todos os meus pensamentos, quando tentava entender a economia. "Não tem jeito", pensava eu, "o operário é sempre explorado, ele está na base de sustentação do capitalismo", e mesmo quando assistimos ao fracasso peremptório do socialismo, soviético, derivados e independentes (alguém aí quer falar do chinês?), a mais-valia aparecia imaculada, a mostrar, talvez, que a exploração é um fato e devemos, eternamente, conviver com essa mancha vergonhosa da humanidade: a exploração do homem pelo homem.
5 - Um recurso "poliânico" aparecia para amenizar essa sina, e, ao mesmo tempo, sempre, desde meus tempos da maior convicção marxista, apareceu como um paradoxo, também sem solução, a constatação que o operariado, especialmente nos países mais avançados, tende a diminuir em quantidade e, para quem estudou cálculo como eu, esse fenômeno mais parece uma assíntota do que um elemento que será determinante para definir o futuro da economia mundial. Como pode a classe que será a dominante no futuro diminuir em tamanho e, nos casos mais avançados, tender a desaparecer? Esse sempre foi o paradoxo que me incomodou.
6 - Os argumentos para contradizer essa constatação também sempre me incomodaram. "É que o capitalismo ainda não atingiu seu ponto de virada, isto é, ainda não esgotou seu processo de evolução". Muito bem, se é assim, não adianta nada lutar, pois o socialismo ainda não se justifica. O melhor é trabalhar para acelerar a evolução do capitalismo, pensava eu. "É o que os países mais desenvolvidos 'exploram' o operariado dos países subdesenvolvidos". No quê? Essa questão me levava a um raciocínio circular, um loop do qual eu não conseguia sair, e que cooperou de forma importante e me questionar sobre o conceito de mais-valia.
7 - O argumento que os "ricos" levam embora a riqueza dos "pobres", nesse concerto das nações, um esquema de exploração reproduzida em escala de, agora, nações, se interpondo no de "classes" me fez perguntar: como definir "riqueza"? Qual é a riqueza contida em um punhado de bauxita? Qual é a riqueza contida num parafuso recém fabricado?
8 - Definitivamente: se riqueza se define em objetos, sejam eles metal precioso bruto ou manufaturado, então ainda não saimos do século XVIII. Foi Ricardo quem sugeriu o uso de metais preciosos como unidade de valor. Espanhóis e austríacos sentiram bem na carne as consequências desse equívoco. Com o fim da paridade ouro preconisado pelo governo Nixon, dos Estados Unidos, enterrou-se definitivamente esse conceito. Contudo, parece que a idéia continua firme na cabeça de nossos amigos socialistas modernos. Por que?
9 - Porque se não for assim, a teoria da mais-valia cai totalmente por terra. Riqueza é algo que deve se atribuir a objetos, do contrário, como se pode medir o valor que um operário manufatura ao fabricar uma peça? Como reconhecer o valor do trabalho de um boia-fria ao coletar o produto da colheita?
10 - Mas, aí, eu pergunto: de quem calcular a mais-valia: do operário que dirige o arado, ou do cavalo que o puxa? Se uma máquina a diesel substitui uma máquina a vapor, produz mais energia e exige menos operários para operá-la, para onde vai a mais-valia dos operários dispensados? Se o patrão ganha mais com isso, como calcular a mais-valia da nova configuração? Para os marxistas essa mais-valia continua para os operários dispensados, pois sempre se manifestam contra qualquer movimento de automação. Mas, se a automação é a tendência de evolução do capitalismo, como pensar o socialismo como evolução natural a partir do capitalismo, se seus arautos se opõem a ela?
11 - Uma solução apareceu na minha cabeça vindo de algo inesperado. Foi estudando algoritmos evolutivos que me deparei com uma análise revolucionária: o mercado de trabalho pode ser pensado como um mercado qualquer, só que de forma invertida. Nesse caso, o patronato representa do lado consumidor, enquanto que o operariado representa o lado do fornecedor desse mercado. Visto assim, as coisas parecem muito mais naturais. O sentimento que tive pareceu ser o de Galileu Galilei quando se deparou com o trabalho de Copérnico: as coisas pareceram se encaixar com muito mais naturalidade.
12 - Por outro lado, li em algum lugar uma análise que me era inédita. A riqueza é um status que não aparece na natureza selvagem. Ninguém era rico, enquanto vivia na selva. Riqueza é um conceito social, aparece na estratificação social, desde o início dos tempos. Em outras palavras, ser pobre é se aproximar do estado em que se vivia no início dos tempos. Ser rico é poder se aproveitar das benesses da ação social, seja cultural, seja tecnológica. O pobre é aquele que está fora do processo evolutivo da sociedade. A ele é reservada as tarefas menos atrativas, que coincidentemente, exigem menor especialização. A construção do operariado se faz no arrebanhamento dessa população culturalmente "atrasada". Coloco aspas porque é um conceito anacrônico. Não há cultura "atrasada" no sentido que, após um tempo, ela vá chegar ao estado da cultura "adiantada". Podemos pensar em culturas diferenciadas e que não se adaptam ao processo evolutivo de uma comunidade, de uma sociedade. Exemplo: os índios americanos, eles não são atrasados, são emanados de uma cultura que não é compatível com o modo ocidental de cultura. Nesse caso, um indivíduo originário dessa cultura é marginalizado e não encontra meios para se inserir, a menos que abandone a sua e tente adotar a dominante. Nesse caso ele é "explorado" ao máximo, pois a inserção na cultura é, justamente, se armar de ferramentas necessárias para não se deixar enganar ou ser explorado (para entender isso é necessário estudar algoritmos evolutivos). Mas na medida que ele se adapta, abandonando sua cultura original, ele vai conseguindo se inserir no processo que pode durar gerações. Se, pelo contrário, ele não quer renunciar suas origens, ele continua marginalizado. Tudo isso não anula o fato que, investida de preocupação social, parte da sociedade dominante se encarregue de encontrar meios de adaptação da parte excluída. Coisa que, também, não deve ser descartada da análise. No entanto, pelo que observo, essa parte não é Lula. Dar dinheiro para o povo tem mais a ver com populismo do que ação social.
13 - Foi aí que eu percebi que riqueza é um conceito cultural, tem mais a ver com Freud do que com M&E. Tem mais a ver com o estado de evolução civilizatória do que com a quantidade de óleo depositada abaixo da camada de pré-sal nas costas do Brasil. E tem mais, estado civilizatório não tem nada a ver com o que se combina nas assembléias patrocinadas pelo sindicalismo petista. A civilização não tem nada a ver com os Black Blocs. Tem que ler Freud, não Marx. Ainda por cima, "O Mal-Estar na Civilização" é muito mais convidativo à leitura do que "O Capital".
14 - O preço das coisas tem muito mais a ver com seu poder de troca do que com o quanto custou para fabricá-lo. O que se paga ao operário é apenas um componente do preço de uma mercadoria. Para isso temos que estudar a teoria da precificação industrial de Gauss. Mas isso muitos marxistas não fazem, pois matemática não é bem sua seara.
15 - Atribuir o preço das coisas a partir dos custos de sua manufatura é uma escolha arbitrária. Não há um só argumento lógico que garanta essa escolha. A menos que sejamos místicos e acreditamos nos desígnos divinos da raça humana.
16 - Por falar nisso, no Brasil, esse namoro entre esquerda e Igreja já vai para as bodas de ouro, não?

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

De Amigos e Monstros

Li, hoje, Cora Rónai queixando-se de gente, que parecendo gentil, defende pontos de vista que nos parecem monstruosos. É assustador. Mas eu acho que isso não é novo. Pelo contrário, distanciar-se do sofrimento dos outros e tratá-lo como algo banal é característica da humanidade. Execuções de condenados, seja por degola, crucificação, enforcamento, fogueira e guilhotinagem eram marcadas nos domingos (depois da missa) para dar oportunidade ao povo do local comparecer. Por muito tempo, essa era a maior diversão, a começar pelos espetáculos do Coliseu. Essa condição, para mim, tem a ver com a identificação afetiva, que está intimamente relacionada com as organizações sociais primitivas, que costumo chamar de clãs. Há o conceito na língua inglesa expresso na palavra kin, pessoa que mantém relação entre parental e comunitária com outra. Desde que o homem é homem ele se identifica afetivamente com o kin, um membro de seu clã. E é só. O resto, é como se fossem animais.
Em cidades e burgos, a aglomeração de gente não garante o clã. As pessoas, pelo isolamento, vão perdendo essa condição e, pouco a pouco vão diminuindo o círculo de seus  kins. Ver o vizinho morrer esfaqueado não abate tanto, sobretudo em comunidades carentes, menos expostas às benesses da cultura civilizatória. É a indiferença para com o 'não semelhante'. Não é kin, pode fazer o que quiser. A cultura civilizatória, curiosamente, pelo que lembra da entropia, age no sentido de tentar incorporar um círculo cada vez maior ao um grande clã, coisa que o cristianismo tentou implantar, porém, digamos, de uma forma meio "atabalhoada". Nossa tendência, através da globalização, das notícias veiculadas nas midias, nas redes sociais etc, é vermos o outro cada vez mais como 'semelhante', cada vez mais como kin. Mas isso tem preço, e o primeiro deles já foi detectado por Freud em o "Mal-estar na Civilização". Essa atitude, em primeira instância, é renunciarmos dos sentimentos de revanchismo e retaliação. Não é fácil, nem rápido, nem linear. E a consequência mais demolidora é a sensação generalizada de indiferença e solidão. Já não se aceita passivamente assistir o vizinho ser degolado, mas o preço é não sabermos sequer seu nome.
Isso me leva ao tema de Hannah Arendt: A banalização do mal. O que ela detecta é o mal como a ação contínua de levar milhões de pessoas à morte programada. Na realidade, o novo aqui é a escala do ato. A indiferença para com o não kin estende-se a uma escala de milhões. É o modo de produção capitalista na selvageria do ato. Para Eichmann, tudo não passava de uma lista de nomes. Gente que nada tinha de relação com ele. Não eram kin.
Disso tudo, chego à conclusão: o mal é banal. Faz parte de nosso cotidiano. E, sabe Cora, constatar isso é duro. Ver amigos e colegas festejarem a queda das Torres de Nova Iorque me deixou estupefado, mas não devia me surpreender. Para chegar ao que sei hoje, foi preciso viver grandes decepções já na década de 1970. É duro, Cora, descobrir que um parente seu, alguém que você praticamente idolatrava, participava de assaltos a banco e atentados que matavam ou feriam gente. O seguimento ainda foi mais implacável. "Quedas", fugas, conversas sorrateiras nos cantos, medo, muito medo. Vivia-se a ditadura, você sabe. No Chile, esse parente lá se encontrava refugiado é assassinado friamente por soldados de Pinochet, esse, mais um do time do "mal-banal". Sua esposa refugia-se na Embaixada da Argentina, onde uma "companheira" lhe dá a falsa informação de que seu marido encontrava-se na Embaixada da Colômbia. Quando a farsa cai por terra, sua justificativa foi de "querer acalmar", digamos, como se acalanta uma criança com uma pequena mentira. Será que essa "companheira" um dia se deu conta da desmobilização pela procura do desaparecido que ela provocou? Atitudes como essa, Cora, para mim, está entre a idiotice e a covardia. É duro perceber que aqueles mais eloquentes são os primeiros prontos para as maiores covardias. É duro perceber que você está cercado de gente que se não é canalha, é idiota; se não é idiota, é covarde. E são seus vizinhos, companheiros, colegas, amigos, Cora.
Duro é descobrir que seus amigos, as pessoas que você mais amava, preconizam a mesma ditadura, agora do "outro lado". É difícil ver gente que se apresenta como de "esquerda" defender apaixonadamente tudo o antes identificava os facistas: nacionalismo, intolerância à diversidade, simpatia por atos violentos, culto à personalidade. O anti-imperialismo agora traduz-se no anti-semitismo. O que devia ser uma crítica ao governo xenófobo de Israel transforma-se em ódio aos judeus. Qualquer crítica é taxada como "nazista" ou "pré-nazista", uma redução inadimissível do nazismo. Vide o debate na imprensa de Demétrio Magnole x Tarso Genro. Por tê-lo criticado, Tarso Genro conclui que Demétrio Magnole, pela sua eloquência, é um candidato a Hitler.
Vocês mesmo, da imprensa, Cora, na reação justa de indignação à morte do cinegrafista Santiago Andrade, inconscientemente, ao dar uma cobertura superdimensionada, transmitem uma sensação de corporativismo (olhaí o clã aí) que leva as pessoas se perguntarem se alguém não jornalista teria o mesmo tratamento. Você sabe que não. Os exemplos estão aí, infelizmente, pois estão matando gente a rodo, e das formas mais incrivelmente brutais. Tudo bem, não são kin...