quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Vermelhinho

Quem nasceu, viveu ou morou em São Vicente por algum tempo, ouviu falar de um sujeito de apelido "Vermelhinho". Pessoalmente, eu não saberia reconhecê-lo, pois nunca apontaram para mim a figura do elemento. Lembro apenas de minha mãe descrevendo-o que ficava "vermelho" em certas ocasiões vexatórias. Conheci membros de sua família e posso dizer, pela minha experiência, que todos ali seguiam a linha do caráter de seu "patriarca": ninguém prestava.

Vermelhinho aparecia na cidade de tempos em tempos e todas as vezes que o fazia era aprontando algum golpe: seja loteando a Ilha Porchat (algo como fazer o mesmo com o Pão de Açucar, no Rio de Janeiro), ou vendendo terrenos que se descobriria depois se tratarem de quarteirões, já bem loteados, no centro de Itanhaém ou Mongaguá, cidades já bem estabelecidas há séculos, mas desconhecidas dos incautos na época. Enfim, Vermelhinho sempre vinha com alguma picaretagem. Via de regra, era preso por estelionato. Era época em que "espertos" como ele eram dados por inofensivos, desde que não fosse você a vítima.

Assisti de perto um episódio envolvendo membros de sua família que não deixo de me recordar de tempos em tempos, por insólito e divertido. Estava eu tranquilo bebendo em mais uma caneca de chopp de que tinha direito, em mais uma festa do chopp, no clube local. A "festa do chopp" daquela época evoluiu para a "october fest" de hoje. Hoje em dia, talvez organizem as "october fests" com um pouco mais de "ambientação" em referência às famosas festividades dos países germânicos. Naquela época, você comprava o ingresso, que lhe dava direito a uma caneca, concebida com motivos próprios, exclusivamente para a ocasião. De caneca na mão, você se dirigia aos "postos de abastecimento" onde se servia em quantas vezes você quisesse enquanto durasse a festa, desde que não saísse do clube. O controle de venda para menores era bastante "liberal", quer dizer, nenhum. Os próprios funcionários controlavam "por alto" um limite de no mínimo 14 anos, e olha que o rigor não era muito respeitado. Uma orquestra tirolesa, "importada" diretamente de Santa Catarina, tocava as músicas ao propósito e todo mundo se divertia.

Como dizia, bebia eu mais uma caneca de chopp, sentado nas arquibancadas do ginásio do clube, que era onde se realizavam estas festas, quando vi, entrando por uma porta lateral, vinda do interior do clube, uma briga envolvendo garotos entre 13 e 14 anos. Briga de garoto: um grupo avançava sobre um pré-adolescente que batia o quanto podia e apanhava muito mais. Em princípio, briga de garoto machuca muito mais a alma do que o corpo. Talvez algumas escoriações, mas nada que deixasse marca definitiva. Mas, na alma dói. Você passa a ser assunto certo nas rodas de garotos de todas as turmas, rivais ou não. Golpes são exagerados, reações são amplificadas. Você se torna o tema central de um assunto que dura semanas, muitas vezes anos, talvez para sempre. Apanhar ou bater numa briga de garoto é entrar nos anais da história oral do lugar. Se chegamos em casa com o um olho roxo, damos um susto na nossa mãe, que, tomada pelo clima da emergência, parte logo para aplicar suas "curas": batata crua, lâmina de faca de cozinha fria, além de passar um "sabão" pela "molecagem" do filho. O pai não pode saber. Se souber, não pode saber que você apanhou de uma "turma". Fica ele com aquela cara apreensiva, como se estivesse perguntando se você é um "molenga". Tudo o que você pode fazer quando apanha de uma turma, é procurar a sua e tentar organizar uma "revanche", ou seja, pegar um da outra turma e fazer o mesmo.

Mas, acontece que os da família de Vermelhinho não tinham "turma". Suas índoles não permitiam encontrar turmas para se associar. A turma do Vermelhinho eram os próprios parentes, todos eles de idade mental comparável ao do garoto, embora as idades físicas fossem as mais diversas.

Quando saí para ir embora, na praça em frente ao clube, lá estavam o irmão (muito) mais velho do garoto que apanhou, o primão, o tiozão e o pai. Tinham tentado entrar no clube, mas naturalmente foram rechaçados. Aguardavam a saída da "turminha" que bateu no garoto para acertarem as contas. Os pais dos garotos envolvidos já tinham sido alertados e providenciaram a retirada de seus filhos por portas mais reservadas. Ficaram os da turma do Vermelhinho lá, a ameaçarem e contarem vantagens, além de enumerarem o mal que fariam aos "covardes" que ousaram bater no menino.

Juntava gente. Formou-se uma roda de curiosos e os "valentões" vociferavam contra quem "ousasse" se interpor no caminho deles para o "acerto de contas", quando um cidadão apareceu e iniciou-se um diálogo com os beligerantes. 

Cidadão: Por favor, acalmem-se. Pensem bem, esta situação é ridícula. Não vale a pena brigar por uma rixa de garoto.

Gente do Vermelhinho: Acalmar o c... Quem é você para falar isso? Tá querendo "levar o seu", também?

Cidadão:  Será melhor para todos se se esquecer o que passou, ir para casa, esfriar a cabeça e tentar pensar em outra coisa.

Gente do Vermelhinho: É melhor não se meter, otário. Tá se metendo onde não é chamado e quem entra em briga dos outros acaba se dando mal.

Cidadão (mudando subitamente o tom): Pois quem vai se dar mal são vocês. Eu sou sub-delegado de polícia e já chamei a PM para levar vocês para a delegacia por ameaçar a ordem pública. Tá aqui ó (mostrando a carteira).

Nesse momento, encostando em frente à cena, vinha uma "joaninha" da PM.  O tal sub-delegado dirigiu-se aos PMs. Todos os curiosos (eu inclusive) deparamos estupefatos com a cena, os PMs saindo da viatura e não percebemos a "turminha" do Vermelhinho saindo de fininho, pescoço enfiado na gola, "com o rabo entre as pernas", como dizia minha mãe.

Cidadão (sub-delegado): Agora estão fugindo que nem rato? Não vão, não! Vocês estão presos. - Sinalizando para os PMs que já iniciavam uma corrida no encalço dos fugitivos.

Não fiquei para ver o final. Nessa ocasiões, o melhor é sair sorrateiro, sem ser notado, antes que lhe tomem como "testemunha", ou coisa pior. Mas a cara dos "valentões", pescoço metido em suas golas (se pudessem, meteriam também suas cabeças), antes, cheios de moral e coragem, agora, com cara de camelô fugindo do rapa, se fixou na minha memória como uma das mais divertidas a que pude assistir.