domingo, 10 de julho de 2022

Fabricando o Absolutismo

 Tenho acompanhado a série "Making a Murderer", na Netflix. Trata-se de uma sequência de episódios documentando uma investigação e processo acerca de um assassinato escabroso ocorrido no interior do Estado de Wisconsin. A história começa com a libertação de um suposto agressor sexual condenado injustamente por tentativa de estupro, e mais tarde sofrerá uma acusação de assassinato pelos mesmos policiais de sua cidade, agora auxiliados pelo promotor e pelo xerife de uma cidade vizinha, com o fim de "eximir" seus colegas de qualquer dúvida quanto às suas intenções e também porque foi lá que o desaparecimento da vítima foi registrado.

No desenrolar da história, fica nítida a antipatia do xerife da cidade pela família do acusado. Esta possui um ferro-velho e explora o serviço de reboque e remoções. Parece que há uma rusga anterior sugerida apenas pela queixa de uma cunhada do xerife por uma incursão do, mais tarde, acusado, que joga seu carro contra o dela num descampado completamente tomado pela neve, como sói acontecer por aqueles cantos. Era a reação dele que se queixava de que tinha sido acusado injustamente por ela de uma cena de exibicionismo sexual que o documentário nos induz a acreditar que teria, na verdade, sido praticado pelo real agressor sexual cuja acusação o rapaz do ferro-velho sofreria depois.

A tentativa de estupro, diga-se de passagem, visou uma mulher bastante respeitada na comunidade. Por semelhança e, possivelmente, por direção enviesada do policial-desenhista, a vítima termina por reconhecer o rapaz do ferro-velho como seu agressor.

Após 18 anos, através da introdução da técnica do DNA, foi possível inocentar o rapaz e provar a autoria do agressor, que era reconhecido pela comunidade por conta de agressões anteriores e que, ao se livrar desta acusação, ainda praticou outras, até ser preso, alguns anos depois. Assim, a polícia e a promotoria não só acusaram injustamente um inocente, como também deixaram na rua um agressor, livre para repetir seu crime. Esta situação não pareceu afetar os policiais e o promotor de alguma forma.

É aqui que começa o drama. A série nos orienta a concluir que, não só por um inconcebível erro judicial, como também por atitudes repugnantemente tendenciosas e criminosas dos policiais, que usam suas prerrogativas para plantar provas e impedir a defesa de fiscalizá-los, o rapaz, que claramente não passa de um matuto, será condenado por um assassinato hediondo. Tudo parece indicar que a idéia é livrar as autoridades da cidade de uma indenização milionária, que as seguradoras, percebendo a forma tendenciosa de como as investigações foram conduzidas, se negaram a cobrir. A pressão fez o rapaz negociar a indenização, de tal forma que lhe sobraram recursos tão somente para financiar sua defesa na nova acusação. Parece que os acusadores esperavam que ele aceitasse se declarar culpado e, por uma armação combinada, pegaria prisão por alguns anos com direito a condicional. Acontece que, por "burrice" ou teimosia, o rapaz preferiu partir para sua defesa.

Orientada por uma ONG de proteção aos direitos civis, a família do rapaz contrata dois advogados de peso. A acusação reagiu, partindo para o ataque. Por falta de material, armou-se de golpes baixos. Novas evidências vão surgindo em incontáveis buscas e revistas ao domicílio e oficinas do acusado, regidas ao bel-prazer dos acusadores, a cada vez que a defesa denuncia e descortina complôs e armações promovidas com o intuito de sustentar a acusação, tudo nas barbas de um tribunal sob o comando de um juiz fraco e voluntarista. A narrativa da promotoria não se sustenta. Mesmo com as provas plantadas, as coisas não batem, sempre a dúvida prevalece. E no entanto, tudo leva a crer que o desfecho será a condenação, pelo simples fato que o policiais são tidos como idôneos. Além disso, os acusadores levam o público a crer que os advogados de defesa são mal intencionados e se servem de argumentos sofismáticos com a idéia e semear confusão.

Eis aqui um exemplo claro do que chamo "absolutismo do poder da virtude". Supõe-se que os poderosos são virtuosos, logo é desnecessário submetê-los ao controle da coletividade. Foi assim no absolutismo da monarquia francesa. É assim com a polícia e sistema judicial da totalidade dos países. É assim com agentes fiscalisadores das três instâncias: federal, estadual e municipal. É assim com parlamentares, presidentes, governadores, politicos em geral e juízes de todas as instâncias. Não importa o país. Começa com atitudes de tímida corrupção: pequenos pecados. Termina com a corrupção generalizada.

E tem gente que acredita na virtude e insiste: agora vai dar certo! Querem votar em quem já provou ser desonesto, ou em jumentos vestidos de humanos. Aceitam este estado fascista como fato consumado. 

E la nave va...