quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

De Amigos e Monstros

Li, hoje, Cora Rónai queixando-se de gente, que parecendo gentil, defende pontos de vista que nos parecem monstruosos. É assustador. Mas eu acho que isso não é novo. Pelo contrário, distanciar-se do sofrimento dos outros e tratá-lo como algo banal é característica da humanidade. Execuções de condenados, seja por degola, crucificação, enforcamento, fogueira e guilhotinagem eram marcadas nos domingos (depois da missa) para dar oportunidade ao povo do local comparecer. Por muito tempo, essa era a maior diversão, a começar pelos espetáculos do Coliseu. Essa condição, para mim, tem a ver com a identificação afetiva, que está intimamente relacionada com as organizações sociais primitivas, que costumo chamar de clãs. Há o conceito na língua inglesa expresso na palavra kin, pessoa que mantém relação entre parental e comunitária com outra. Desde que o homem é homem ele se identifica afetivamente com o kin, um membro de seu clã. E é só. O resto, é como se fossem animais.
Em cidades e burgos, a aglomeração de gente não garante o clã. As pessoas, pelo isolamento, vão perdendo essa condição e, pouco a pouco vão diminuindo o círculo de seus  kins. Ver o vizinho morrer esfaqueado não abate tanto, sobretudo em comunidades carentes, menos expostas às benesses da cultura civilizatória. É a indiferença para com o 'não semelhante'. Não é kin, pode fazer o que quiser. A cultura civilizatória, curiosamente, pelo que lembra da entropia, age no sentido de tentar incorporar um círculo cada vez maior ao um grande clã, coisa que o cristianismo tentou implantar, porém, digamos, de uma forma meio "atabalhoada". Nossa tendência, através da globalização, das notícias veiculadas nas midias, nas redes sociais etc, é vermos o outro cada vez mais como 'semelhante', cada vez mais como kin. Mas isso tem preço, e o primeiro deles já foi detectado por Freud em o "Mal-estar na Civilização". Essa atitude, em primeira instância, é renunciarmos dos sentimentos de revanchismo e retaliação. Não é fácil, nem rápido, nem linear. E a consequência mais demolidora é a sensação generalizada de indiferença e solidão. Já não se aceita passivamente assistir o vizinho ser degolado, mas o preço é não sabermos sequer seu nome.
Isso me leva ao tema de Hannah Arendt: A banalização do mal. O que ela detecta é o mal como a ação contínua de levar milhões de pessoas à morte programada. Na realidade, o novo aqui é a escala do ato. A indiferença para com o não kin estende-se a uma escala de milhões. É o modo de produção capitalista na selvageria do ato. Para Eichmann, tudo não passava de uma lista de nomes. Gente que nada tinha de relação com ele. Não eram kin.
Disso tudo, chego à conclusão: o mal é banal. Faz parte de nosso cotidiano. E, sabe Cora, constatar isso é duro. Ver amigos e colegas festejarem a queda das Torres de Nova Iorque me deixou estupefado, mas não devia me surpreender. Para chegar ao que sei hoje, foi preciso viver grandes decepções já na década de 1970. É duro, Cora, descobrir que um parente seu, alguém que você praticamente idolatrava, participava de assaltos a banco e atentados que matavam ou feriam gente. O seguimento ainda foi mais implacável. "Quedas", fugas, conversas sorrateiras nos cantos, medo, muito medo. Vivia-se a ditadura, você sabe. No Chile, esse parente lá se encontrava refugiado é assassinado friamente por soldados de Pinochet, esse, mais um do time do "mal-banal". Sua esposa refugia-se na Embaixada da Argentina, onde uma "companheira" lhe dá a falsa informação de que seu marido encontrava-se na Embaixada da Colômbia. Quando a farsa cai por terra, sua justificativa foi de "querer acalmar", digamos, como se acalanta uma criança com uma pequena mentira. Será que essa "companheira" um dia se deu conta da desmobilização pela procura do desaparecido que ela provocou? Atitudes como essa, Cora, para mim, está entre a idiotice e a covardia. É duro perceber que aqueles mais eloquentes são os primeiros prontos para as maiores covardias. É duro perceber que você está cercado de gente que se não é canalha, é idiota; se não é idiota, é covarde. E são seus vizinhos, companheiros, colegas, amigos, Cora.
Duro é descobrir que seus amigos, as pessoas que você mais amava, preconizam a mesma ditadura, agora do "outro lado". É difícil ver gente que se apresenta como de "esquerda" defender apaixonadamente tudo o antes identificava os facistas: nacionalismo, intolerância à diversidade, simpatia por atos violentos, culto à personalidade. O anti-imperialismo agora traduz-se no anti-semitismo. O que devia ser uma crítica ao governo xenófobo de Israel transforma-se em ódio aos judeus. Qualquer crítica é taxada como "nazista" ou "pré-nazista", uma redução inadimissível do nazismo. Vide o debate na imprensa de Demétrio Magnole x Tarso Genro. Por tê-lo criticado, Tarso Genro conclui que Demétrio Magnole, pela sua eloquência, é um candidato a Hitler.
Vocês mesmo, da imprensa, Cora, na reação justa de indignação à morte do cinegrafista Santiago Andrade, inconscientemente, ao dar uma cobertura superdimensionada, transmitem uma sensação de corporativismo (olhaí o clã aí) que leva as pessoas se perguntarem se alguém não jornalista teria o mesmo tratamento. Você sabe que não. Os exemplos estão aí, infelizmente, pois estão matando gente a rodo, e das formas mais incrivelmente brutais. Tudo bem, não são kin...