quarta-feira, 26 de novembro de 2014

UPP, e agora? A pergunta que devia ser feita em 2010.

Acho que quem viu não esquece as cenas bíblicas da fuga dos bandidos da Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro, mostrada ao vivo pelas câmaras da televisão, de cima, num helicóptero. Somada ao hasteamento da Bandeira do Estado do Rio de Janeiro no alto da favela, essas são cenas emblemáticas da "retomada pelo estado de direito" das comunidades da região "reféns da sanha insaciável dos bandidos".
Diante daquela cena babilônica, uma pergunta se colocava, mas poucos foram capaz de ouví-la: e agora? Agora, disse nosso governante, vamos instalar UPPs, a polícia vai acabar com tudo quanto é atividade criminosa. O otimismo estampado no aspecto grave de nosso governador decretava: agora virá um ciclo de paz e prosperidade (só faltava o gesto na mão direita do eterno Sr. Spock, personagem interpretado brilhantemente por Leonard Nimoy em Jornadas nas Estrelas).
Na esteira da Vila Cruzeiro, já instalada no Jacarezinho, e outros, vieram a UPP no Vidigal e Rocinha. Aproveite-se o élan: já que estamos que estamos, vamos em frente!
Agora, o que vemos, é que "eles" se adaptaram. Batem de frente com UPPs e seus PMs parcamente treinados. Sequestram, assassinam e se re-instalam. Afinal, o que fazer agora? O que vem depois das UPPs?
Os que estão de alguma forma conectados com essas questões, políticos, sociólogos, diretores de ONGs nacionais e internacionais, e o próprio secretário de segurança, à frente de toda aquela ação, já alertam, não é de hoje: é preciso trazer educação, serviços básicos, serviços do "Estado"; é preciso cidadania.
Cidadania é uma palavra genérica. O que é cidadania? Acho que cada um tem na cabeça uma resposta. A prática da cidadania parece ser a chave para a solução dos graves problemas sociais pelos quais passamos. Só acho difícil definí-la. Se não a definimos de forma definitiva, não acho que seremos capazes de instalá-la onde se faz mais necessária.
O meu ponto de vista se aproxima do mecanismo com que a bandidagem retoma seu posto nas favelas do Rio de Janeiro. Tal como uma colônia de bactérias, ela se adapta ao novo ambiente e se reinstala renovada, mais resistente. É assim: a lei que Darwin enunciou no século XIX se manifesta não só nos recipientes assépticos dos laboratórios de biologia: ela está na base de quase tudo que se faz não somente dentro de nosso corpo, mas nos atos e ações tomadas na sociedade. Só nossa elite (inclusive aquela que costuma tietar o operário-messias) não vê. Nossos governantes passam a kilômetros dessa constatação.
É curioso como até os bandidos agem sob os preceitos da lei da evolução: agora são violentos nos assaltos para impor um sentimento de "pelo menos não fizeram o pior".
Cidadania é um dos frutos da civilização. É uma conquista, e como custou conquistá-la! A civilização se manifesta num eterno balanço entre dois conceitos que se contrapõem: o da garantia dos direitos e o respeito aos limites. Toda vez que os limites não são respeitados, que cada um possa brigar por seus direitos. Eu sempre me perguntei como essa dicotomia se apresenta numa favela, um lugar onde se instala sem autorização, onde não se delimita onde termina uma propriedade. Na favela não se respeita limites e não se pode exigir por direitos. Há civilidade? Há cidadania?
Há quem (e há tantos) acredite que a simples execução dos "bandidos" bastará. De onde acham que vieram esses atuais bandidos? E por que acham que com a "morte" desses não virá ninguém para ocupar o lugar?
Muita gente sustenta que, por ser habitada por gente amistosa e cordial, a favela não tem "pé de bandido", como diria um cantor popular emanado de uma delas. Eu chamo a atenção para a questão que Freud coloca em O Mal Estar na Civilização: não terá a amistosidade e a cortesia nas favelas a ver com essa "precariedade de civilização"? Nesse caso, essa "bandidagem" tem a ver com as manifestações de hierarquização no sentido civilizatório, onde usurpadores tentariam assumir o poder, numa espécie de estado embrionário. Uma sociedade pré Totem e Tabu, como alega Freud: no início o poder foi ocupado por "estrangeiros".
A instalação plena, ou sua tentativa, da "civilidade" possivelmente não vai resolver, no estado atual das coisas. Pois, se é verdade que vale a lei da evolução aqui, as forças usurpadoras de poder, os bandidos, já criaram seu "nicho de sobrevivência", pois é característica universal das espécies consolidadas. Há outra razão para que a orientação na "direção certa" tenha grande chance de falhar. É que o problema ganha complexidade porque essas forças se sustentam no comércio de drogas ilegais. O comércio de drogas, legais e ilegais, é, talvez, o mais promissor de todos, pois mexe com algo incontornável: a angústia da morte. Num certo sentido, na base, todo comércio se sustenta nisso, já que é a contrapartida civilizada da nossa luta pela sobrevivência no estado selvagem. O comércio de produtos que aliviam a angústia, a de morte inclusive, é a "última fronteira" da aventura humana, como se diz na apresentação do Jornada nas Estrelas.
Por isso, e agora? Agora, nada, meu amigo. É encomendar o caixão.