segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Tolerância Zero de São Paulo

"Polícia que mata mais, morre mais", diz o comentarista na televisão. Esse é um fato. Iria mais longe: polícia que bate mais, a população sofre mais na mão dos bandidos e da própria polícia. Parece óbvio, mas não dá para negar que a brutalidade com que os bandidos tratam suas vítimas tem particularidades regionais. É claro que todos são assustadores e agressivos, faz parte da tática de manter a vítima em estado de choque, para não assumir o controle. Mas, dito nas conversas das reuniões, refeições, quando se conta casos de assaltos e agressões nos diferentes cantos do Brasil, vemos diferentes formas de brutalidade praticada, em função da região. No Nordeste é comum  relatos de estupros seguindo assaltos. No Sudeste vê-se desprezo pela vida da vítima. No Sul surra-se quem não tem bens suficientes para satisfazer o agressor. Mas, em certos lugares, ouve-se relatos de uma certa "negociação" entre as partes. Deixa-se dinheiro para o ônibus, o chip do celular. Tenho tendência a pensar que, de certa forma, o modo operandis dos bandidos reflete em algum grau a forma com que a população em comunidades carentes são tratadas pela polícia. É uma forma de "instrução", de "treinamento". Não podemos nos esquecer que a polícia é a instância mais presente do Estado na população. Em nosso caso, aqui, essa polícia chega a ser a única instância do Estado presente. E não se abre exceção às milicias, pois as pessoas identificam o cidadão representante e não sua função no momento, coisa que elas não fazem a menor idéia. Se o cidadão é identificado como PM, como policial, como PF, não importa se ele está em serviço ou praticando a milícia. Para a população, é ação de Estado. Na falta de escolas, hospitais, repartições de atendimento em geral, a polícia é a única a representar o Estado junto à população. Logo, a forma da polícia atuar, é a "cara" do Estado. Como tal, as pessoas tendem a tomá-la como exemplo.
A polícia, por sua vez, praticamente sem treinamento - quando tem -, sem comando efetivo, sem laço social, age na base do conceito de justiça que cada um de seus integrantes tem. "Olho por olho", é o que se ouve falar. "Bandido não tem direito a nada", é a base do conceito de justiça que encontramos nos policiais. Não há lei, há vingança. Não procedimento, há enfrentamento. Nesse plano o policial se equipara ao criminoso. O policial se coloca como o reverso do criminoso. E sabemos que os opostos são dois lados de uma mesma moeda. Firma-se um "diálogo" em que, se o bandido "merece morrer", se bandido "tem é que apanhar", este retribui "falando" à população na mesma moeda: "otário (nós) tem é que morrer", "otário tem é que apanhar".
Não chegaremos a lugar nenhum lugar enquanto nossos governantes não entenderem que a polícia deve, sempre, estar do lado da lei. Deveria haver um epíteto para a polícia: "A polícia é o império da lei". E a lei não prevê agressão, assassinato, tortura, arbitrariedade. A lei é a lei, e a polícia deveria ser a guardiã da lei. Enquanto não for assim no Brasil, vamos continuar a assistir o que vemos todos os dias na televisão. Só muda de região, só muda a coloração. A violência é sempre a mesma.

domingo, 11 de novembro de 2012

A Lógica da Estuprada

Quando era estudante, na década de 70, sob plena ditadura, tive na mão uma revista que trazia inserida um estorinha de quadrinhos de autoria de um francês. Conta a estória de um francesão, vivendo a "boa vida" numa aldeia a beira mar na Bahia. Ele era apaixonado por uma "nativa", uma mulatinha jeitosa, mas adolescente e virgem. Brincava com ela, inocentemente, na esperança de, um dia, vir a "desposá-la". Mas, um sacripanta, que reivindicava respeito por "ser um negociante", acabou por "fazer mal na menina", deixando o francês 'P' da vida. Na discussão ele pega a menina, vão prô mar e "sacramentam" o amor. As mulheres "locais" se perguntam se isso é "certo", pois nem eram casados. "Mas, o mal já estava feito, não é?"
A lógica da estuprada é muito corrente no Brasil. O que pareceu um jeito exótico para o autor francês, na verdade é uma maldição. O brasileiro tem a tendência a perdoar um mau feito se houve precedente impune. O pior é que a justiça brasileira tem tendência a raciocinar assim. Recentemente, absolveram o agressor de uma prostituta que o acusou de estupro. Considerando o estilo de vida da vítima, sua "inocência" seria descartada. O STF, mais para ajuntamento de advogados mercenários do que para uma corte (vide declaração de Daniel Dantas), também já inocentou um estuprador de uma menina de 12 anos porque, "nessa idade", hoje em dia, já se poderia considerá-la uma "moça".
Não é só com respeito a esse crime específico que o brasileiro é "condescendente" com o infrator. Esse raciocínio é o carro chefe da defesa do mensalão do PT. "Roubaram" dizem os defensores de Zé Dirceu e companhia, mas antes deles, também outros já roubaram. E se escaparam impunes, por que só esses terão de ser condenados? Se for assim, um assassino condenado poderá argumentar: só 2% dos homicídios são resolvidos. Por que só eu teria de ser crucificado?
Toda vez que falam dessa coisa de "estão nos crucificando", "a imprensa está criando uma farsa", "estão nos perseguindo", eu me lembro da estorinha do cartunista francês. É a lógica da estuprada. Muita gente no Brasil pensa assim.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Respeito de "Viver do Trabalho"

Em uma coluna da página 15 de O Globo, a Acadêmica Ana Maria Machado faz um apanhado completo do drama dos direitos autorais nas "mídias" e na internet em particular. Defende o Marco Civil da Internet, lei em discussão e tramitação no Congresso Nacional. Dona Ana Maria Machado quer que a veiculação de audiovisual na internet, sem a devida chancela de quem de direito, seja considerado crime. Assim: um neguinho (não tomem, aqui, por favor, qualquer relação envolvendo etnia - me recuso a falar de raça; neguinho é um vício de linguagem meu para referir qualquer ser humano), então, um neguinho resolve produzir um vídeo de uma viagem a Quito e daí põe um fundo musical do tipo "Bapa-rum, mau, mau" para dar um clima. Gosta do que fez e resolve por no YouTube e veicular na social prá mostrar pros amigos. Então? A Comics Entertainment poderá solicitar a prisão do neguinho pelo "bapa-rum", por ser ela a detentora dos direitos da elucidativa canção? A Prefeitura de Quito, acho, também teria direito. O dono da casa ladrilhada que, eventualmente, nosso amigo fotografou e inseriu no seu vídeo poderia denunciá-lo por roubo de imagem.
Peraí, gente. Sou a favor da preservação dos direitos de autor, mas crime, não! Mais paradoxal ainda é que, paralela a essa briga, vem outra, defendida por muitos - e muitos daqueles que se batem pelo Marco Civil -, pela descriminização de um "tapinha" de erva de vez em quando. Um "tapinha", pode. Por um fundo musical num videozinho do YouTube, cadeia! Vai ver que essa é a mesma lógica que no Brasil tenhamos uma legislação que bota na cadeia por oito anos, em regime fechado, sem direito a sursis, quem mata um passarinho, mas permite responder em liberdade e com direito a sursis, se condenado, quem mata um ser humano. Às vezes pode ser até assassino confesso e nem por isso pega um dia sequer de prisão (alguém aí vai duvidar?).
Falando sério, acho que o direito de autor deve ser preservado no INTERESSE DO AUTOR. Que seja econômico, se este assim o quiser. O descumprimento do dever econômico deve ser um crime grave (e no Brasil, não é), mas isso não tem nada a ver com direito autoral, tem a ver com direito civil e penal. No Brasil, onde ainda acreditamos que Deus é brasileiro, temos a mania de falar por Ele: escrever certo por linhas tortas. Em vez de corrigirmos a falha na legislação, insistimos em usar um paliativo para o caso específico. O neguinho postou no YouTube e Facebook? Ganhou dinheiro com isso? Então, que pague! Se não pagar, cadeia por ser mau pagador. Agora, o neguinho posta uma música qualquer. O autor nem se manifesta, ou se interessa, mas cadeia pro neguinho. Um 'ladrão'  da arte alheia.
Mesmo assim, acho relativo essa coisa de direito de autor na mídia. O músico, até fins do século XIX, não contava com mídia para divulgar seu trabalho. Ele tinha que sair por aí, "vendendo" seu produto, isto é, cantando, interpretando, recitando pelas praças públicas e pedindo uma "cooperação". As pessoas "pagavam"  com o que podiam e de acordo com o grau de apreciação do que viam e ouviam. Escritores enviavam seus produtos a mecenas que divulgavam. Estes, eventualmente, ofereciam pensão, mas mandavam copiar os trabalhos, e às suas custas divulgavam pelo mundo afora, onde outros copiavam para suas bibliotecas, e eu não tenho notícia de "pagamento de direitos autorais" pelos "copistas".
Foi no desenvolvimento dos meios de comunicação de massa que a arte e literatura que se conheceram um potencial desconhecido. E os interesses do grande capital se voltaram para ganhar, e muito, em cima de artistas e escritores, e estes reagiram, cheios de razão, e exigiram que um naco dessa riqueza viesse para eles. Foi uma reação em cima da ação predatória do grande capital.
Mas, a fonte verdadeira da riqueza do autor nunca deixou de ser o "pé-na-estrada" da canção imortalizada por Milton Nascimento. O contato do artista com seu público sempre foi a fonte de riqueza e a razão do artista existir. O ganho pela veiculação na mídia deve ser relativizado. Deve ser entendido no contexto do confronto capital x trabalho, do contrário, como disse a acadêmica Ana Maria Machado, voltaremos ao escravismo, com o artista como único escravo na sociedade democrática.
Podemos fazer uns exercícios interessantes a esse propósito, como pensar que o eventual autor da expressão "quem te viu, quem te vê" poderia registrá-la num desses órgãos de proteção ao direito autoral e exigir indenização de Chico Buarque pela sua utilização em um dos mais belos sambas de nossa MPB.
Toda arte, quando publicada, como diz a palavra, torna-se pública. Não pertence mais a quem a fez. A criação artística é autoria individual mas tem cunho social porque só pode ser concebida no contexto em que o artista vive. Hoje em dia, com a disseminação da internet, com a crescente democratização da mídia, falar em direito econômico do autor começou a perder o sentido. Salvo pela proteção contra a exploração pelo grande capital, coisa que tende cada vez mais a se dissipar, nunca foi tão verdadeiro a expressão "a arte é do povo". Reconhecer o crédito é a única reivindicação legítima pois com isso presta-se homenagem ao autor e dá a ele a credibilidade necessária para seu ganha pão.
O artista vai ter que voltar à praça pública para ganhar a vida.