terça-feira, 20 de maio de 2014

Exorcisando I

Sempre me falaram da mais-valia como um elemento fundamental constituinte natural da economia capitalista. Agora me pergunto se esse realmente é o caso. Porque:
1 - Mais-valia é um conceito introduzido por Marx e Engels para dar base a sua teoria de exploração que a burguesia exerce sobre o proletariado. Sem mais-valia não há exploração do trabalho.
2 - Para introduzir esse conceito, M&E vão buscar em David Ricardo, em seu Princípio da Política Econômica e Taxação, a declaração: "o patrão paga ao operário o mínimo necessário para a sua sobrevivência". Para M&E essa é uma constatação suficiente para concluir que o operário é explorado em seu trabalho.
3 - Essa conclusão não é assim tão direta. Para chegar a ela é preciso partir do princípio que o preço de uma mercadoria (que para M&E é integralmente produzida pelo operário, isto é, pela classe operária) é igual ao valor da sua manufatura. Será?
4 - Por muitos anos aceitei isso como um axioma, de forma que o conceito de mais-valia sempre teimou em se interpor em todos os meus pensamentos, quando tentava entender a economia. "Não tem jeito", pensava eu, "o operário é sempre explorado, ele está na base de sustentação do capitalismo", e mesmo quando assistimos ao fracasso peremptório do socialismo, soviético, derivados e independentes (alguém aí quer falar do chinês?), a mais-valia aparecia imaculada, a mostrar, talvez, que a exploração é um fato e devemos, eternamente, conviver com essa mancha vergonhosa da humanidade: a exploração do homem pelo homem.
5 - Um recurso "poliânico" aparecia para amenizar essa sina, e, ao mesmo tempo, sempre, desde meus tempos da maior convicção marxista, apareceu como um paradoxo, também sem solução, a constatação que o operariado, especialmente nos países mais avançados, tende a diminuir em quantidade e, para quem estudou cálculo como eu, esse fenômeno mais parece uma assíntota do que um elemento que será determinante para definir o futuro da economia mundial. Como pode a classe que será a dominante no futuro diminuir em tamanho e, nos casos mais avançados, tender a desaparecer? Esse sempre foi o paradoxo que me incomodou.
6 - Os argumentos para contradizer essa constatação também sempre me incomodaram. "É que o capitalismo ainda não atingiu seu ponto de virada, isto é, ainda não esgotou seu processo de evolução". Muito bem, se é assim, não adianta nada lutar, pois o socialismo ainda não se justifica. O melhor é trabalhar para acelerar a evolução do capitalismo, pensava eu. "É o que os países mais desenvolvidos 'exploram' o operariado dos países subdesenvolvidos". No quê? Essa questão me levava a um raciocínio circular, um loop do qual eu não conseguia sair, e que cooperou de forma importante e me questionar sobre o conceito de mais-valia.
7 - O argumento que os "ricos" levam embora a riqueza dos "pobres", nesse concerto das nações, um esquema de exploração reproduzida em escala de, agora, nações, se interpondo no de "classes" me fez perguntar: como definir "riqueza"? Qual é a riqueza contida em um punhado de bauxita? Qual é a riqueza contida num parafuso recém fabricado?
8 - Definitivamente: se riqueza se define em objetos, sejam eles metal precioso bruto ou manufaturado, então ainda não saimos do século XVIII. Foi Ricardo quem sugeriu o uso de metais preciosos como unidade de valor. Espanhóis e austríacos sentiram bem na carne as consequências desse equívoco. Com o fim da paridade ouro preconisado pelo governo Nixon, dos Estados Unidos, enterrou-se definitivamente esse conceito. Contudo, parece que a idéia continua firme na cabeça de nossos amigos socialistas modernos. Por que?
9 - Porque se não for assim, a teoria da mais-valia cai totalmente por terra. Riqueza é algo que deve se atribuir a objetos, do contrário, como se pode medir o valor que um operário manufatura ao fabricar uma peça? Como reconhecer o valor do trabalho de um boia-fria ao coletar o produto da colheita?
10 - Mas, aí, eu pergunto: de quem calcular a mais-valia: do operário que dirige o arado, ou do cavalo que o puxa? Se uma máquina a diesel substitui uma máquina a vapor, produz mais energia e exige menos operários para operá-la, para onde vai a mais-valia dos operários dispensados? Se o patrão ganha mais com isso, como calcular a mais-valia da nova configuração? Para os marxistas essa mais-valia continua para os operários dispensados, pois sempre se manifestam contra qualquer movimento de automação. Mas, se a automação é a tendência de evolução do capitalismo, como pensar o socialismo como evolução natural a partir do capitalismo, se seus arautos se opõem a ela?
11 - Uma solução apareceu na minha cabeça vindo de algo inesperado. Foi estudando algoritmos evolutivos que me deparei com uma análise revolucionária: o mercado de trabalho pode ser pensado como um mercado qualquer, só que de forma invertida. Nesse caso, o patronato representa do lado consumidor, enquanto que o operariado representa o lado do fornecedor desse mercado. Visto assim, as coisas parecem muito mais naturais. O sentimento que tive pareceu ser o de Galileu Galilei quando se deparou com o trabalho de Copérnico: as coisas pareceram se encaixar com muito mais naturalidade.
12 - Por outro lado, li em algum lugar uma análise que me era inédita. A riqueza é um status que não aparece na natureza selvagem. Ninguém era rico, enquanto vivia na selva. Riqueza é um conceito social, aparece na estratificação social, desde o início dos tempos. Em outras palavras, ser pobre é se aproximar do estado em que se vivia no início dos tempos. Ser rico é poder se aproveitar das benesses da ação social, seja cultural, seja tecnológica. O pobre é aquele que está fora do processo evolutivo da sociedade. A ele é reservada as tarefas menos atrativas, que coincidentemente, exigem menor especialização. A construção do operariado se faz no arrebanhamento dessa população culturalmente "atrasada". Coloco aspas porque é um conceito anacrônico. Não há cultura "atrasada" no sentido que, após um tempo, ela vá chegar ao estado da cultura "adiantada". Podemos pensar em culturas diferenciadas e que não se adaptam ao processo evolutivo de uma comunidade, de uma sociedade. Exemplo: os índios americanos, eles não são atrasados, são emanados de uma cultura que não é compatível com o modo ocidental de cultura. Nesse caso, um indivíduo originário dessa cultura é marginalizado e não encontra meios para se inserir, a menos que abandone a sua e tente adotar a dominante. Nesse caso ele é "explorado" ao máximo, pois a inserção na cultura é, justamente, se armar de ferramentas necessárias para não se deixar enganar ou ser explorado (para entender isso é necessário estudar algoritmos evolutivos). Mas na medida que ele se adapta, abandonando sua cultura original, ele vai conseguindo se inserir no processo que pode durar gerações. Se, pelo contrário, ele não quer renunciar suas origens, ele continua marginalizado. Tudo isso não anula o fato que, investida de preocupação social, parte da sociedade dominante se encarregue de encontrar meios de adaptação da parte excluída. Coisa que, também, não deve ser descartada da análise. No entanto, pelo que observo, essa parte não é Lula. Dar dinheiro para o povo tem mais a ver com populismo do que ação social.
13 - Foi aí que eu percebi que riqueza é um conceito cultural, tem mais a ver com Freud do que com M&E. Tem mais a ver com o estado de evolução civilizatória do que com a quantidade de óleo depositada abaixo da camada de pré-sal nas costas do Brasil. E tem mais, estado civilizatório não tem nada a ver com o que se combina nas assembléias patrocinadas pelo sindicalismo petista. A civilização não tem nada a ver com os Black Blocs. Tem que ler Freud, não Marx. Ainda por cima, "O Mal-Estar na Civilização" é muito mais convidativo à leitura do que "O Capital".
14 - O preço das coisas tem muito mais a ver com seu poder de troca do que com o quanto custou para fabricá-lo. O que se paga ao operário é apenas um componente do preço de uma mercadoria. Para isso temos que estudar a teoria da precificação industrial de Gauss. Mas isso muitos marxistas não fazem, pois matemática não é bem sua seara.
15 - Atribuir o preço das coisas a partir dos custos de sua manufatura é uma escolha arbitrária. Não há um só argumento lógico que garanta essa escolha. A menos que sejamos místicos e acreditamos nos desígnos divinos da raça humana.
16 - Por falar nisso, no Brasil, esse namoro entre esquerda e Igreja já vai para as bodas de ouro, não?